Invariavelmente, os meus posts batem asas, voando como pássaros livres em direcção a um infinito imaginário, que idealizo alagado de cores, esperanças e vidas impossíveis. A veia poética pulsa, incorrigível, na minha escrita versada, algo que me apraz e, anuncio sem hesitação, não tenciono alterar. Mas hoje vou estancar com ligadura de mágoa a hemorragia lírica, erguer uma muralha de amargura entre mim e o subjectivismo poético que sempre me espreita, e contar um acontecimento real.
A história passou-se em Vila Nova de Gaia. Importante cidade nortenha banhada pelo Douro, reconhecida como entreposto português do Vinho do Porto, de forte desenvolvimento ao nível das industrias vidreira, tanoeira e cerâmica. Berço de escritores e artistas como Almeida Garrett, Diogo de Macedo ou Soares dos Reis. Pois entre os trezentos mil habitantes de Vila Nova de Gaia, tentam viver e estudar duas raparigas de dezassete e dezoito anos a quem vamos chamar Ana e Raquel. As duas jovens conheceram-se ao pertencerem à mesma lista concorrente às eleições para a Associação de Estudantes da Escola Secundária António Sérgio. A cumplicidade foi imediata, a empatia cresceu transformando-se numa amizade profunda que as preenchia. Trocaram experiências, confessaram pecados, revelaram segredos, e numa tarde de Março, o quarto da Ana foi o palco do acto que selou o namoro: o primeiro beijo.
Os dias passaram, as semanas passaram, os meses passaram, e a relação entre a Ana e a Raquel fortaleceu. Ambas acordaram em, num momento oportuno, conversar com os pais acerca da existência de “uma amiga especial”, pois é difícil enfrentar os desafios do mundo sem o apoio dos pais, mesmo com a gigantesca força que se tem aos dezoito anos. Até que poucos dias depois, numa ala quase deserta da escola, a Ana e a Raquel, pensando estar a sós, comprimiram as bocas uma na outra. O beijo foi presenciado por uma auxiliar de acção educativa que berrou imediatamente: “Estão a comer-se uma à outra!”, insistindo em dar voz à crueldade com repetições sucessivas: “Estão a comer-se uma à outra! Estão a comer-se uma à outra!”
Os gritos funcionaram como rastilho. Em poucas horas toda a escola comentava a relação entre as duas alunas. No dia seguinte, uma professora, membro do Conselho Executivo, mandou chamar as duas raparigas e repreendeu-as até às lágrimas: “Se querem ser lésbicas, vão sê-lo para bem longe da escola.” Poucos dias depois, os encarregados de educação de ambas, que permaneciam desconhecedores do namoro, foram convocados para uma reunião com o Conselho Executivo onde lhes foi comunicada a “atitude menos decente das suas filhas.” A Ana e a Raquel não resistiram à pressão. Deixaram de ir às aulas.
E esta era a história que vos queria contar.
Neste mundo que construímos à nossa imagem, temos céu azul, estrelas rutilantes, mares infinitos, poesias, esperanças, paixões… E gente ignorante que odeia tudo quanto difere do seu conceito de normalidade. São gente aparentemente igual a todos nós. Têm família, amigos, profissão. Não conseguimos distingui-los ao olhar para eles. Mas um dia denunciam-se berrando: “Estão a comer-se uma à outra!” Não provocaram que duas jovens de dezassete e dezoito anos estilhaçassem o seu futuro como porcelana, ao deixarem de frequentar a escola. Não, claro que não. Apenas gritaram: “Estão a comer-se uma à outra!” Depois, concluído o horário de trabalho, voltam para casa. Jantam, vêem televisão e dormem um sono descansado.
Ana e Raquel, o que pensam fazer doravante, não sei. Mas o que realmente valerá a pena fazer quando se vive num mundo assim?