Não sei o que queres dizer com glória, disse Alice.
Humpty-Dumpty sorriu, com desprezo. Claro que não, até que eu te diga. Quero dizer "aí tens um belo argumento que te arruma!"
Mas "glória" não significa um belo argumento que te arruma
, objectou Alice.
Quando eu uso uma palavra, disse Humpty-Dumpty, em tom de escárnio, ela significa o que eu decidir que significa, nem mais nem menos.
O problema é, disse Alice, se se pode obrigar as palavras a significar tantas coisas diferentes.
O problema é, disse Humpty-Dumpty, quem manda. Apenas isso.

Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas




rascunhos
de
abordagens
(eventualmente)
literárias



GNM


Nasci muito perto do fim dos anos 70. O meu nascimento aconteceu às primeiras horas de um dia gelado de Dezembro, e, desde aí, jamais consegui libertar-me do frio que se fazia sentir naquele dia. A normalidade foi algo que durante toda a vida inconscientemente ansiei, mas sempre recusei. Em criança ela espreitava-me durante a noite, olhando-me do lado de fora da janela. E eu, fingindo não a ver, fechava as cortinas...

Cristal

⊆ quinta-feira, dezembro 29, 2005 por GNM | . | ˜ 30 comentários »

Já cometi tantos erros na vida,
Já perdi tanto tempo.
Havia um menino louro
Com faces rosadas como um irlandês embriagado.
Para onde se vai quando se morre?
Para onde fui?
Talvez a vida seja mesmo assim,
E esteja apenas diferente.


A espuma do fogo

⊆ segunda-feira, dezembro 26, 2005 por GNM | . | ˜ 31 comentários »

Como se fosses um poema em braille, toquei-te.
Estremeceste como sinal de transito ao vento.
Fitei os teu lábios tingidos de rubro e beijei-te,
Beijei o passado, a eternidade, o momento…

Semicerraste os teus olhos negros fuzilantes,
Tens na boca o sabor de um cálice de poesia,
Esquecidos do mundo, perdidos como amantes,
Reinventámos o equinócio duma noite sem dia.

Os nossos olhos lançam chamas voluptuosas,
Somos a esperança, a paixão, o êxtase, o prazer,
Libertos, sem pudor, em sinfonias silenciosas,
Reduzindo o universo aos nossos corpos a arder.

O teu coração, esse musculo cadente e sangrento,
Que desafia a noite com o brilho de rubi afogueado,
Faz-me esquecer que o mundo é um beco lamacento
Que percorremos aos círculos num caminhar atolado.


Adeus...

⊆ quarta-feira, dezembro 21, 2005 por GNM | . | ˜ 32 comentários »

Tudo está morto. Incorrigivelmente morto.
Como pode morrer algo que nunca viveu?
Desperto a meio da noite, triste e absorto,
Foi um sonho que tive. Nada aconteceu.

Foste embrulho cúbico em papel fantasia,
Enfeitado com um laço de todas as cores,
A felicidade é assim: intermitente e fugidia,
São sempre passageiros os amores e dores.

Nunca fiz mais nada que renascer e morrer.
Renasço nu. Morro com a roupa de Domingo,
O êxtase é uma torrente para além do prazer,
Como posso sobreviver se só eu os distingo?

Não suporto este silêncio dos gritos da alma,
Mantenho-me firme no silêncio das emoções,
Num afago terno, a noite aconselha-me calma:
“É sempre intrincado o regresso das perdições.”

Dormes. Eu afasto-me de ti em bicos de pés,
Sonhas. Os sonhos são só teus. Apenas teus!
Caminho para a porta, desconheço quem és,
A palavra mais triste é a palavra “Adeus…”


Tu

⊆ segunda-feira, dezembro 19, 2005 por GNM | . | ˜ 21 comentários »

Eclipsaste com um sorriso as tempestades violentas,
E com um simples toque das tuas mãos cariciosas,
Transformaste o céu de nuvens espessas e cinzentas,
Num veludo azul, com delicadas nuvens plumosas.

Emprestaste ao vento o teu perfume de maresia,
Em redor pairam aragens do teu aroma refrescante,
Esse teu cheiro é sonho, é esperança, é poesia,
O sol intimidou-se perante o teu olhar cintilante.

Fizeste do mundo uma contemplação maravilhosa,
E em cada vale, em cada rio, em cada colina…
Pairam reflexos suaves da beleza despretensiosa,
Que resplandece de ti e generosamente os ilumina.

Roubaste-me as lágrimas. São orvalho prateado!
Refizeste cada uma das tristezas numa nova flor!
Partamos agora. O caminho é longo e acidentado,
Até chegarmos à perdição dos eucaliptos do amor.


Caminho

⊆ sexta-feira, dezembro 16, 2005 por GNM | . | ˜ 17 comentários »

Estou descalço, seguro os sapatos na mão,
Esmago cacos de vidro com pés sangrentos,
Sorriso afivelado, sem tempo para lamentos,
Enquanto percorro o meu caminho da ilusão.

Ora avanço e digo sim, ora paro e digo não,
Os meus dias ora são azuis, ora são cinzentos,
Sempre assaltados por mil e um pensamentos,
Temo rasgar o peito com o bater do coração.

Como é doce sentir-me vivo, mesmo sem norte,
Como gostaria de ser o decisor da minha sorte,
E acabar de repente, enquanto a vida assim corre.

Dama de negro, leva-me agora para o teu forte.
O segredo da imortalidade é desejar a morte,
Só quem deseja loucamente a morte nunca morre.


Fragmentos do incêndio

⊆ terça-feira, dezembro 13, 2005 por GNM | . | ˜ 27 comentários »

Hoje amanheci pouco depois das oito horas,
É a manhã inaugural da minha segunda vida.
Sorri, estava esquecido do sabor das auroras,
Fui o amante secreto da noite enlouquecida.

Estóico, levantei-me e vesti-me rapidamente,
Com minúcia, retirei as etiquetas da roupa nova
Que ofereci, ontem, a mim próprio de presente,
Sabendo que a auto estima precisava de prova.

Onde estará o menino inocente de cabelo louro…
Sem aviso prévio, sumiu-se sem deixar rasto,
Ao perceber que a vida não era o tal tesouro,
Mas antes um mero acaso, absurdo e nefasto.

O sentido foi desfalecendo a pouco e pouco,
Aventurei-me em mil e uma migrações lendárias,
A medo, olhei-me de lado. Encontrei-me louco,
Dançando a valsa agridoce das almas solitárias.

Sonhos caíram mortos. Metralhados no peito.
Horizontes foram estilhaçados como porcelana.
Abro todas as janelas, encosto-me ao parapeito,
Devolvo ar fresco a esta vida mais que profana.

Queria encontrar-te. Antes fui encontrado por ti,
Espreitavas-me no teu silêncio desde Domingo,
E eu, com a cegueira de quem procura, não te vi,
Escrevi que me vingaria… é agora que me vingo.

Hesitei. Sim, é verdade. Não tenho medo de nada.
Mas qual o louco que no meu lugar não hesitaria?
Histórias doces de descoberta da alma encantada
Só em filmes americanos ou ensaios de poesia.

Mas não vou pensar mais. Basta! Agora vou viver!
O sábio, o verdadeiro sábio, foi o Alberto Caeiro,
Que olhou a mundo à sua volta com olhos de ver.
Também eu quero olhar assim o mundo inteiro!

Viver, apenas. Os nossos destinos estão traçados:
Hospedes cadavéricos de uma morgue citadina,
Ao som do tinir metálico dos bisturis esterilizados
Misturado com o riso dos estudantes de medicina.


Segredos

⊆ quinta-feira, dezembro 08, 2005 por GNM | . | ˜ 37 comentários »

Guardei-os na minha alma. Trancados na gaveta do fundo,
Mas não suportei deter provas duma existência desfalecida,
(Sei que o mundo é um homem triste de cabeça descaída),
Sou apenas mais um reles habitante do planeta moribundo.

Para quê guardar segredos maiores que o próprio mundo?
Eram meus. Só meus. Eram maiores que a própria vida,
(E quanta pequenez existe nesta vidinha embrutecida…),
Hoje, lancei-os cimentados às águas de um rio profundo.

Doravante o mundo será uma mulher fogosa e fascinante,
E eu serei outro homem. Leve como pluma esvoaçante,
Sou livre! Quebrei os pregos dos pulsos, soltei-me da cruz.

Aventura, aqui me tens! Sou o teu mais recente amante,
Dá-me asas, deixa-me voar sem fim, até ao sol radiante,
Vou ter com ele e encandeá-lo com o brilho da minha luz.


Barqueiro

⊆ domingo, dezembro 04, 2005 por GNM | . | ˜ 36 comentários »

Como barqueiro enlouquecido nos mares gelados,
Despedaço gelo com débeis remos de madeira,
O frio invade-me. O sol é miragem passageira,
Violentamente, sigo por quadrados já quebrados.

Rasgo mares jamais por alguém antes rasgados,
Fios de água gelaram na minha face sobranceira,
A minha pequena barca é frágil, mas vai ligeira,
Leva-me para mares que já julgava sepultados.

Respiro fundo. Há pouco oxigénio pairando no ar.
Esta minha raiva feroz obriga-me a não parar,
Esqueço as tuas tempestades, os meus cansaços.

Perdido, avanço. Não sei até onde vou chegar,
Mas avanço. Estou encolhido, mas vou continuar,
E já em chamas, irei erguer-me e abrir os braços.


Procuro-te...

⊆ sexta-feira, dezembro 02, 2005 por GNM | . | ˜ 18 comentários »

Ondeiam-me chamas de melancolia,
Procuro-te com uma ânsia crescente,
Por todo o lado vejo gente diferente,
Gente sorridente, simpática, vazia…

E tu? Estás oculta como por magia,
Quero-te! És esguia como serpente
Que aparece e desaparece de repente,
Após cuspir o vil veneno da fantasia.

Mas sou prisioneiro da minha liberdade,
Todos os dias acordo sem vontade…
É amargo não amar, não ser amado.

Mas ainda tenho saudades da saudade,
Pela noite deito-me com o peso da verdade,
Caindo como soldado de chumbo tombado.


Assassina de rosas

⊆ quarta-feira, novembro 30, 2005 por GNM | . | ˜ 27 comentários »

Passa uma rapariguinha que carrega azevinho,
Beberico este café com aquelas boas maneiras
De quem sorve suavemente um copo de vinho,
Enquanto a destemida rapariga assalta as roseiras.

Com as pequenas mãos, quebra o caule espinhoso,
Assassinando, a cada momento, uma rosa inocente,
Com o mesmo esplendor triunfante e orgulhoso,
Com que beberico o meu café amargo e quente.

Rasga um sorriso revelador de agradecida alegria,
Cada vez que consegue ouvir o pequeno estalido
Denunciador que a rosa já esteve viva, uma dia…
Antes de alguém, por tanto a amar, a ter destruído.

Minutos depois as restantes rosas choram sem fim,
Aquelas pequenas mãos, mortíferas como garras,
Esqueceram-se que o lugar das flores é no jardim,
Preferindo guardá-las cadavéricas dentro de jarras.


Domingo

⊆ segunda-feira, novembro 28, 2005 por GNM | . | ˜ 26 comentários »

A rua deserta rende-se à terrível escuridão.
Lojas fechadas. Apenas cães vagueiam pensativos,
Carros, cada vez mais raros, quebram a evasão,
Rasgam a noite adormecida, desaparecem esquivos.

E as gotas da chuva salpicam a janela.

É Domingo. E eu nunca gostei do Domingo.
Como estátua de cera, vou ficar aqui, quieto, calado,
Esperar pelo momento ansiado em que me vingo,
Encarnando a raiva deste silêncio febril, envergonhado.

E a chuva fortificada desafia a janela.

Oiço apenas o sangue latejar-me nos ouvidos,
Como se eu fosse um autómato pré-programado,
De emoções e sentimentos trancados e proibidos,
Com passado mais que secreto e futuro adiado.

E a janela combate a força da chuva.

Os candeeiros da rua acendem-se bruscamente!
Peço-lhes, gentilmente, que se voltem a apagar:
“Essa vossa luz alaranjada, teimosa e insistente,
Empalidece toda a beleza rutilante do meu luar”.

E a chuva feroz chicoteia a janela.

É com silencio trocista que me olham desafiantes,
E o luar esmorece enquanto o observo desfalecer,
Sou percorrido por certezas amargas e lancinantes,
De que nada tenho a ganhar, nada tenho a perder.

E a janela rende-se finalmente, alagada.


Escombros erguidos

⊆ quinta-feira, novembro 24, 2005 por GNM | ˜ 32 comentários »

Sei que não consegui corresponder,
Ao teu impecável francês parisiense,
E a primeira impressão sabe dizer,
Aquele que perde, aquele que vence.

Mas comprei um casaco novo a estrear
(Muito simples, mas bem aprumado),
Percebi que não escapou ao teu olhar,
Aquele meu casaco velho e remendado.

E pus as pantufas na máquina de lavar
(Esqueci que não me vês com elas calçadas),
Ficaram sem cor e com solas a descolar,
Estão ainda mais feias, ao menos lavadas.

E pergunto-me, ainda confuso e pensativo,
Por que me senti invulgarmente à vontade?
Não obstante o teu porte seguro e altivo,
Soprou sobre nós o vento da cumplicidade!

Serás eco de uma pré-existência passada?
Senti-me como viajante de regresso a casa,
Depois de uma viagem amarga e prolongada,
Redescobrindo uma realidade que o extravasa.

Vagueámos sem destino por mais que uma hora,
Os ponteiros rodavam demasiado apressados,
Tive vontade de atirar os nossos relógios fora,
E pedir aos cruéis sinos que ficassem calados.

Mas não o fiz. Caminhei e encolhi os ombros,
A muralha da timidez permaneceu erguida.
Como gostava de a ter desfeito em escombros,
E poder desvendar doravante uma nova vida…

Plaisir d’amour ne dure qu’un moment,
Chagrin d’amour dure toute la vie.


Ao anoitecer

⊆ segunda-feira, novembro 21, 2005 por GNM | ˜ 32 comentários »

Em pezinhos de lã, a Noite chegou sem saudade,
Sem aviso prévio, abriu um velho baú prateado,
Desdobrou o veludo negro, forrou o céu da cidade,
E bailou no ar contemplando o céu transformado.

Estava sentado à mesa, observando-a da janela,
Ela exibia a elegância numa doce provocação,
Levantei-me num salto, soprei a chama da vela,
Agarrei-a num beijo, sustendo-lhe a respiração.

Com uma pureza inventada, mostrou-se ofendida,
Recuou um passo. Mordisquei-lhe os lábios ardentes,
Detendo-a por um momento mais, enlouquecida,
Vingou-se. Cravou na minha carne os seus dentes.

Adieu”. Segredou-me apaixonadamente ao ouvido,
Correu e lançou-se lesta ultrapassando a janela,
Olhei-a num salto, incapaz de segurar um gemido,
Fechei os olhos, respirei fundo, saltei atrás dela…


O teu grito

⊆ sábado, novembro 19, 2005 por GNM | ˜ 23 comentários »

Gostava de saber o que te distingue tanto…
Tens a felicidade do mundo inteiro dentro de ti,
Sinto-a nos teus passos, no sorriso, no encanto,
No olhar glaciar de mar selvagem que jamais vi.

Alagada de génio, sorriso rasgado nos lábios,
Bebia-te palavras, destruías ideias e verdades,
Recordei os dias em que devorava livros sábios,
Reconheci-me nas tuas palavras, senti saudades.

Ouvia-te atentamente, protegido pela distância,
De um só trago bebi a coragem engarrafada,
Combatendo ferozmente fantasmas de infância,
Que me faziam querer tudo e alcançar nada.

Por duas vezes lançaste-me olhares de relance,
Camuflei o meu olhar numa fuga para o infinito,
Fingindo falsas divagações de grande alcance,
Guardando em mim a mensagem do teu grito:

"Não! Não podemos aceitar que as ciências,
Nas suas estúpidas certezas e evidências,
Nos imponham uma visão cinzenta do mundo,
Esses bem pensantes do racionalismo moribundo,

Reduzem-nos a relação causa/efeito maquinal.
Jamais aceitarei essa visão apagada e marginal!
Não sou mais uma peça da vossa engrenagem,
Não calo esta mensagem. Estou só de passagem..."


O louco do espelho

⊆ sexta-feira, novembro 18, 2005 por GNM | ˜ 17 comentários »

Não conheço aquele homem infeliz,
Que me imita em movimentos afinados.
Mantém-se calado… Nada me diz,
Fita-me de olhos firmes mas cansados.

Encontro-o pela manhã, todos os dias!
Entra em minha casa silenciosamente,
Pergunto: “Quem és? Por que me copias?”
Emudece! Olha-me e ignora-me de frente.

Será que as lágrimas lhe sufocaram a fala?
Tem aspecto esgrouviado, olhar vermelho,
Que amarguras serão aquelas que cala
O homem estranho que aparece no espelho?

Um dia, escorria sangue do meu rosto.
Encontrei-o. O sangue escorria-lhe também!
Cerrei as mãos, esmurrei-o com gosto,
Desfi-lo em cacos… tornou-se ninguém!


"Estão a comer-se uma à outra!"

⊆ quarta-feira, novembro 16, 2005 por GNM | . | ˜ 32 comentários »

Invariavelmente, os meus posts batem asas, voando como pássaros livres em direcção a um infinito imaginário, que idealizo alagado de cores, esperanças e vidas impossíveis. A veia poética pulsa, incorrigível, na minha escrita versada, algo que me apraz e, anuncio sem hesitação, não tenciono alterar. Mas hoje vou estancar com ligadura de mágoa a hemorragia lírica, erguer uma muralha de amargura entre mim e o subjectivismo poético que sempre me espreita, e contar um acontecimento real.
A história passou-se em Vila Nova de Gaia. Importante cidade nortenha banhada pelo Douro, reconhecida como entreposto português do Vinho do Porto, de forte desenvolvimento ao nível das industrias vidreira, tanoeira e cerâmica. Berço de escritores e artistas como Almeida Garrett, Diogo de Macedo ou Soares dos Reis. Pois entre os trezentos mil habitantes de Vila Nova de Gaia, tentam viver e estudar duas raparigas de dezassete e dezoito anos a quem vamos chamar Ana e Raquel. As duas jovens conheceram-se ao pertencerem à mesma lista concorrente às eleições para a Associação de Estudantes da Escola Secundária António Sérgio. A cumplicidade foi imediata, a empatia cresceu transformando-se numa amizade profunda que as preenchia. Trocaram experiências, confessaram pecados, revelaram segredos, e numa tarde de Março, o quarto da Ana foi o palco do acto que selou o namoro: o primeiro beijo.
Os dias passaram, as semanas passaram, os meses passaram, e a relação entre a Ana e a Raquel fortaleceu. Ambas acordaram em, num momento oportuno, conversar com os pais acerca da existência de “uma amiga especial”, pois é difícil enfrentar os desafios do mundo sem o apoio dos pais, mesmo com a gigantesca força que se tem aos dezoito anos. Até que poucos dias depois, numa ala quase deserta da escola, a Ana e a Raquel, pensando estar a sós, comprimiram as bocas uma na outra. O beijo foi presenciado por uma auxiliar de acção educativa que berrou imediatamente: “Estão a comer-se uma à outra!”, insistindo em dar voz à crueldade com repetições sucessivas: “Estão a comer-se uma à outra! Estão a comer-se uma à outra!”
Os gritos funcionaram como rastilho. Em poucas horas toda a escola comentava a relação entre as duas alunas. No dia seguinte, uma professora, membro do Conselho Executivo, mandou chamar as duas raparigas e repreendeu-as até às lágrimas: “Se querem ser lésbicas, vão sê-lo para bem longe da escola.” Poucos dias depois, os encarregados de educação de ambas, que permaneciam desconhecedores do namoro, foram convocados para uma reunião com o Conselho Executivo onde lhes foi comunicada a “atitude menos decente das suas filhas.” A Ana e a Raquel não resistiram à pressão. Deixaram de ir às aulas.
E esta era a história que vos queria contar.
Neste mundo que construímos à nossa imagem, temos céu azul, estrelas rutilantes, mares infinitos, poesias, esperanças, paixões… E gente ignorante que odeia tudo quanto difere do seu conceito de normalidade. São gente aparentemente igual a todos nós. Têm família, amigos, profissão. Não conseguimos distingui-los ao olhar para eles. Mas um dia denunciam-se berrando: “Estão a comer-se uma à outra!” Não provocaram que duas jovens de dezassete e dezoito anos estilhaçassem o seu futuro como porcelana, ao deixarem de frequentar a escola. Não, claro que não. Apenas gritaram: “Estão a comer-se uma à outra!” Depois, concluído o horário de trabalho, voltam para casa. Jantam, vêem televisão e dormem um sono descansado.
Ana e Raquel, o que pensam fazer doravante, não sei. Mas o que realmente valerá a pena fazer quando se vive num mundo assim?


Rua dos aromas esquecidos

⊆ segunda-feira, novembro 14, 2005 por GNM | ˜ 26 comentários »

Encontrei-te numa rua de um bairro assombroso,
Eras apenas vulto longínquo, escuro e misterioso.
Quem serias? Astronauta? Mendigo? Assassino?
É turvo o aroma misterioso do meu destino…

Mas o uivo da tua respiração rasgada, ofegante,
Os passos do teu caminhar preciso e dançante,
Reconstruíram num instante o que o tempo desfez,
E depois do «FIM» retornou o «Era uma vez…»

Sim! Era verdade. Eras mesmo tu quem ali estava,
Aquela que eu jamais vendo, sabia que amava!
Não eras archote de olhar azul, de cartaz de publicidade,
Não eras deusa grega, nem estátua da liberdade.

Eras mulher singela, de caminhar convicto e exacto,
Denunciando que o baú do amor permanece intacto.
Existes! Passeias, noctívaga, pela floresta de betão.
Órfã da brisa da cidade, voas, entre nuvens de ilusão.


Noite encantada

⊆ sexta-feira, novembro 11, 2005 por GNM | ˜ 33 comentários »

Noite encantada, cobre-me com o teu manto,
Será que sabes que te amo loucamente?
Anseio o teu cheiro amargo a suor quente,
Onde me perco e encontro em teu encanto.

Quebro o tédio dos dias cinzentos em pedaços,
E enlouqueço por disfarçar toda a saudade
Da beleza negra que exibes com vaidade,
Enquanto descubro prazeres dos teus regaços.

Como é doce mergulhar nos teus braços,
Descobrir-me outro na tua imensa liberdade,
E desvendar cada pedaço da nova verdade,
Que trazes nas tuas formas, nos teus traços.

E pela manhã quando, saudoso, me levanto,
Ainda sinto nos lábios o teu sabor ardente,
Recordo ecos de versos do poema eloquente,
Que me segredaste ao ouvido para meu espanto.


O sopro do (uni)verso

⊆ terça-feira, novembro 08, 2005 por GNM | ˜ 33 comentários »

Aconselham-me, com propriedade, a laquear o coração:
“Os tempos não estão dados a lirismo e poesia”,
Dizem-me com conhecimento proverbial de ancião,
Homens cavos de braços cruzados e alma vazia.

Mas não resisto a escorregar no declive da ilusão!
Talvez por culpa destes dias chuvosos de melancolia,
Que, invariavelmente, me amputam a razão,
Levando-me a ignorar anciães de sabedoria.

Sou um homem vulgar, igual a muitos desta terra,
Almofariz de filósofos, génios, santos, professores...
Mas, por algum motivo, esta minha alma encerra
Uma sede interminável de escrever amores e dores.

Ora então perdoem, caros detentores da verdade,
Os meus ouvidos surdos à vossa voz profetizada,
Mas prefiro esculpir em "vãs palavras" a liberdade,
Que alojar em mim a vossa sabedoria empedrada.


Viagens

⊆ sábado, novembro 05, 2005 por GNM | ˜ 35 comentários »

Esta noite não suporto a ideia de existir.
Vou sentar-me no negrume e fingir,
Que sou outro alguém, imaginário,
Diferente do vil morcego solitário.

Sou louco internado, fugitivo,
Condenado pelo crime de estar vivo,
Sei que nada fiz. Estou inocente!
O meu grave delito foi ser diferente.

Sou rei, ora benévolo ora cruel,
Vivo indeciso entre o mel e o fel,
Tenho o manto roto, anel esquecido,
A coroa ferrugenta, o ceptro partido.

Sou um mendigo sujo e escanzelado,
De semblante sonolento, desconsolado,
Sou sombra gelada na noite cerrada,
Vagueio pela rua em busca de nada.

Sou soldado bravo em missão de guerra,
Fui ferido, estou só, caído por terra,
De lábios rebentados e corpo a ferver,
Estou moribundo, prestes a morrer.

E viajo sem fim na escuridão deste quarto,
Fecho os olhos, bato as asas e parto,
Para lá do limite da minha imaginação,
Abraçando o zénite da infinita imensidão.


A todos os que aqui me lêem, razão de ser deste blog.

⊆ quinta-feira, novembro 03, 2005 por GNM | ˜ 32 comentários »

Não sou adepto de homenagens.
A vida é, cada vez mais, apenas uma série de cerimónias sem valor, nas quais dissipamos o nosso precioso tempo em pródigas homenagens.
Mas, e aproveitando o facto deste blog ter sido destacado pelo Diário de Notícias (edição 29.10.05), distinção que muito agradeço, quero homenagear e agradecer a todos os que me lêem, por toda a atenção e afago que me têm dedicado ao longo desta fantástica aventura na blogosfera.
A todos vocês, que não param de me sensibilizar, muito obrigado.

Continuem a sorrir!


Lugar da memória

⊆ quarta-feira, novembro 02, 2005 por GNM | ˜ 26 comentários »

Por que choras?
Salvaste-me noutras horas,
Em que bradava ao vento
Gritos surdos de tormento,
Enquanto morria lentamente,
Aos olhos de gente indiferente.

Secaste-me as lágrimas salgadas
Que derramei em mágoas choradas.
Não me devolveste o sorriso de criança,
Nunca tinha sorrido, que tivesse lembrança,
Antes me ensinaste a sorrir pela primeira vez,
Era aluno incipiente, ainda o sou, como lês.

Salvaste-me como nunca te salvei a ti,
E hoje que, casualmente, te revi,
Vejo-te apagada, cinzenta, chorosa,
Indescritível, seja em poesia ou em prosa.
Só tu, e apenas tu, foste capaz de me amar,
Perdoa-me. Eu fui incapaz de te salvar.


Segunda-feira

⊆ segunda-feira, outubro 31, 2005 por GNM | ˜ 19 comentários »

Eis-nos de volta à Segunda-feira,
Bocejante, amarga, grosseira.
Ei-la vaidosa,
Esperando ansiosa,
Jeito de meretriz presunçosa.
Ei-la no ensejo
De nos dar um beijo
Ardido de ironia,
Desejando: “Bom dia!”
É como mulher estranha,
Que ninguém acompanha,
Enquanto passeia seis dias perdida
Em busca dos becos da vida.
Ei-la aproximando-se radiante,
Exibindo o corpo provocante,
Mordiscando o lábio inferior…
Eis a Segunda-feira em furor.


Ninguém

⊆ quinta-feira, outubro 27, 2005 por GNM | ˜ 37 comentários »

Quem sou eu?
Ninguém!
Sou vida que não aconteceu.
Sou um erro de alguém…
Se fosse governante ou prostituta,
Atingido pelo espectro da ambição,
A vida dava-me luta,
Teria sonhos… uma missão,
E seria alguém…
Mas assim… quem sou?
Ninguém!
Apenas a frustração de quem me sonhou.
Sou igual à mulher que, dia após dia,
Me estende a mão pedinte no metro de Picoas.
Ambos temos olhos rasos de letargia,
E não acreditamos ser pessoas.
Ambos albergamos um abismo no peito,
Somos sombrios e esfomeados,
O mal é nosso: o mundo é perfeito,
Mas não soubemos ser amados…
Somos tão diferentes e tão iguais.
Ela nunca reparou em mim, certamente,
Sou mais um dos passantes banais,
Que fingem não a ver, olhando em frente.
E perpetua-se o espectáculo das nossas almas cansadas.
Tentam vender-me sonhos já gastos de tão sonhados,
Mas àquela mulher de olhos tristes, sentada nas escadas,
Ninguém lhe diz nada, todos estão apressados…
E ambos sabemos que não somos ninguém,
Se fossemos gente não éramos assim,
Saberíamos quem éramos se fossemos alguém.
Mas obrigam-nos ser flores de aço neste jardim,
Onde o absurdo não tem princípio, não tem fim.


Flor espinhosa

⊆ terça-feira, outubro 25, 2005 por GNM | ˜ 40 comentários »

Fazes-te doce, sei-te perigosa,
Confessa, flor espinhosa:
Foi o diabo quem te enviou!
Mas nenhum dos dois sabe quem sou.
Eu bem sei quem são:
Cúmplices de ociosa perdição,
Predadores de desejos ardentes
À caça de almas imprudentes.
Mas tenho um velho amigo,
A quem todos chamam perigo.
Vou jogar o teu jogo,
Queimar-me no teu fogo,
Deixar o teu espírito voar,
Fazer o teu corpo suar.
Tentas soltar-me as amarras,
Cravar-me as tuas garras,
Pejadas de veneno mortal,
Sou instrumento do teu recital,
E eu caio, sempre caí em tentações,
Não tenho quaisquer ilusões,
Sou mais uma alma condenada
A ser encaixotada e queimada.
Leva-me contigo, enviada do génio do mal,
Juntos, vamos arder no fogo infernal.


Descoberta

⊆ sexta-feira, outubro 21, 2005 por GNM | ˜ 37 comentários »

Descobri outro mundo,
Bem real (não é mito),
Mundo novo oriundo,
Do anseio por infinito.
Onde a fantasia prevalece,
E tudo é diferente: Mágico!
Só lá vive quem merece
Quebrar as correntes do trágico.

O luar inquieto e sedutor
Transvaza e inunda de amor,
Entre estrelas confidentes.
O céu é da cor de olhos teus,
Com sonhos mais loucos que os meus,
Vividos por almas diferentes.


Reinvenção do mundo

⊆ quarta-feira, outubro 19, 2005 por GNM | ˜ 27 comentários »

Não quero mais um dia.
Quero um novo dia,
Repleto de surpresa e fantasia.
Anseio por novidades e mudanças,
Novas cores,
Novas vidas,
Novas esperanças.
Algumas noites deveriam ser prateadas.
Por que hão de ser sempre negras e cerradas?
E o mar? Sempre azul cintilante!
Por que não vermelho flamejante?
Os campos é que deveriam amanhecer azuis algumas vezes,
E todos os anos deveriam mudar o nome dos meses.
Como seria doce pela manhã despertar,
Olhar ao alto e exclamar:
“Hoje o céu está da cor da esperança,
E o tempo parou! O relógio não avança.”
Mas os dias… são todos tão iguais,
Vinte e quatro horas pontuais.
Estou enfastiado desta monotonia grosseira,
Não poderiam ser vinte cinco à sexta-feira?
Contem-me mentiras novas, histórias surpreendentes.
Reinventem o mundo com imagens diferentes.
Só tenho vinte cinco anos e estou tão cansado...
Reinventem este mundo ou levem-me para outro lado!


Lua

⊆ terça-feira, outubro 18, 2005 por GNM | ˜ 16 comentários »

A lua sorri camuflando a verdade,
Sorriso gasto, de esperança perdida,
Sempre evocada, sempre esquecida,
Prisioneira da sua própria liberdade.

Oh lua… conheço-te bem demais.
Também eu sou cavaleiro solitário,
Viajante sem destino… extranumerário,
Prisioneiro de intensas crises outonais.

Sei que carregas em ti uma imensa vertigem:
Observas impotente a miséria e angustia que nos afligem.
E deves pensar: “O mundo poderia ser lindo!”

Também eu carrego no peito um abismo sem fundo,
Desde o dia em que fórceps me lançaram ao mundo,
E sorrindo disseram: “Sê bem vindo!”


Os teus versos

⊆ sábado, outubro 15, 2005 por GNM | ˜ 36 comentários »

Queria escrever-te versos primorosos,
Versos afrodisíacos… deliciosos,
Como aquele teu bolo de canela,
Saboreado com volúpia à luz da vela,

Versos dignos das estrelas brilhantes
Que aos teus olhos roubaram lugar,
Versos jamais sonhados, navegantes,
Nas ondas selvagens do teu olhar.

Mas, minha muito querida, eu não sei,
Queria dar-te muito mais do que dei,
Mas os deuses assim não querem que seja,

Não fui eu o eleito, o sublime, o escolhido,
Para escrever o poema merecedor de ser lido,
Pelos teus doces lábios cor-de-cereja!


Dias

⊆ quinta-feira, outubro 13, 2005 por GNM | ˜ 32 comentários »

Dias insípidos, secos, deslavados,
Tristezas e alegrias morreram afogadas,
Assassinadas sem mágoas nem agrados,
Na quietude de um rio de águas paradas.

Como eu gosto de dias de emoção ardente.
Dias violentos! Quero-vos tanto e tanto,
Devolvo às águas do rio a corrente
E danço nas ondas enquanto canto e canto!

Sou incansável, quero sempre mais e mais,
Esta vida não me basta, quero outras seis,
Todas diferentes, sem lados iguais,
Ainda mais loucas, sem regras nem leis...

Estou farto da letargia sem sobressalto.
Neste mundo sem cor nem história,
Vou gritar aos céus bem alto,
Renego a vossa paz, quero a vitória!


Desalento

⊆ segunda-feira, outubro 10, 2005 por GNM | ˜ 20 comentários »

Espreito-me aqui, no limbo da solidão.
Sou viajante sem bilhete num comboio sem partida.
Mais ermo e abandonado que um cão,
A quem subtraíram o dono e a vida.

Como criança indesejada, nascida sem leito,
Concebida num momento somente fingido,
De membros trémulos e coração desfeito,
Olhar revoltado e sorriso esquecido.

Olhos ensopados e vermelhos,
Existência sombria, desfalecida,
Inconstância, casa de espelhos,
Poesia inútil, nunca lida.

Olhos secos, lágrimas esgotadas,
Saudades da revolta interrompida.
Desisto da luta, guardo as espadas,
Varro do chão a esperança caída...


Feitiço

⊆ sábado, outubro 08, 2005 por GNM | ˜ 21 comentários »

Teu corpo, desejo ansiado, sol nascente,
Ondas de chamas, de gelo ardente,
Atravessam o mar, lentas, silenciosas,
Como espinhos que se escondem entre rosas,

E espinhos ferem como punhais afiados,
Meu peito ainda tem golpes suturados,
E o meu corpo feroz está dolorido,
Pela violência de amores sem sentido.

A noite rouba a luz, derrama a cor,
Liberta nas estrelas o sabor,
Da seda cortante do teu castelo,
Onde tudo arde, tudo é belo,

E o teu rosto luz desafiante,
Com brilho de estrela rutilante,
Faz-me esquecer a imensidão da noite escura,
Enfeitiçado pelos teus olhos de ternura!


A quadrilha

⊆ sexta-feira, outubro 07, 2005 por GNM | ˜ 11 comentários »

O Avelino já tem dentes do siso,
Concorre com os “Malucos do riso”,
E quando não vai ao bordel
Fica a ler Maquiavel.
Ainda quer roubar mais vezes,
Nada resta no Marco de Canavezes.
O people de Felgueiras axa cool,
A doutora Fátima e o saco azul:
“Ela vai à bola todas as semanas
E no final paga o fino e as bifanas”.
Ò Fatinha fazias cá uma falta,
Nada como uma ladra pra animar a malta.
O Valentim é o maior do campeões,
Oferece varinhas-mágicas e televisões,
Festa e sardinhada na avenida,
E que se lixe a câmara falida,
Que o major está bem de vida.
O Isaltino é um queridinho,
Guarda o dinheiro do sobrinho,
E ao Domingo vai à missa
Rezar pelas contas da Suíça,
E se a eleição der para o torto
Compra um táxi e rouba no aeroporto.
Ò ladrõezecos deixem-se de modas,
O vosso problema é falta de fodas.


Sem aqueles dias

⊆ quarta-feira, outubro 05, 2005 por GNM | ˜ 27 comentários »

Sem aqueles dias,
Em que sorrias e cantavas,
Fingindo que não me vias
Enquanto me olhavas.
Sem aqueles dias,
De palavras ao vento,
Em que não distinguias,
A eternidade do momento.
Sem aqueles dias,
De nova verdade,
E as nossas sinfonias,
Acordavam a cidade.
Sem aqueles dias,
Perdidos em beijos,
Mil e uma magias,
E estranhos desejos,
Quem serias?


Sentimentos sem nome

⊆ domingo, outubro 02, 2005 por GNM | ˜ 30 comentários »

Que vais fazer desta vez?
O livro está aberto, tu não lês.
Foste felicidade sem aviso,
Não me basta o teu sorriso,
Sentimentos sem nome
São fumaça que se some.
Ambições rasgam o teu rosto,
Sabes-me feliz e disposto
A conceder-te a minha alma,
Na traiçoeira noite calma.
Timidez de paisagem
Voa no início da viagem,
E solidão dói como dói
Ferida que não mata mas mói.
Confiante preparas os lençóis de cetim,
Sem saberes que todas as histórias têm um fim.


Florbela

⊆ sexta-feira, setembro 30, 2005 por GNM | ˜ 20 comentários »

Nascida às duas da madrugada,
Oito de Dezembro, Vila Viçosa,
Bela como flor formosa,
Flor seria chamada.

Uma vida a amar e esquecer,
Desespero, violentas paixões,
Dores, neuroses, depressões,
Uma vida a sentir e escrever.

Quis mais que a vida!
Cansada, triste, ferida,
Enfim escolheu morrer.

No dia de aniversário,
O suicídio sumário
A si própria quis oferecer...


Sou

⊆ terça-feira, setembro 27, 2005 por GNM | ˜ 20 comentários »

Sou um louco sem loucura,
Iludido sem ilusões,
Ternurento sem ternura,
Decepcionado sem decepções,
Saudoso sem saudades,
Misterioso sem segredos,
Vaidoso sem vaidades,
Amedrontado sem medos,
Romântico sem romantismo,
Revoltado sem revolta,
Conformado sem conformismo,
Viagem de ida sem volta,
Doente sem doença,
Viajante que não viajou,
Crente sem crença,
Sei lá o que sou...


Da janela

⊆ segunda-feira, setembro 26, 2005 por GNM | ˜ 10 comentários »

Olhei pela janela,
Escondido do medo,
À luz quente da vela,
Cada sombra é um segredo.

Em cada rua um desejo,
Mais que vontade, um querer,
Mais um suspiro, roubado um beijo,
Ninguém tem nada a perder...

Chega com ânsia a madrugada,
Longe de tudo o que quer,
A noite foge, apressada,
Por isso: Qu´est-ce qu´on va faire?


Cidade

⊆ domingo, setembro 25, 2005 por GNM | ˜ 23 comentários »

O amor não chega à cidade,
Está triste, esquecida,
Sedenta de verdade,
Sedenta de vida.
Pobre cidade sem amor,
Não vive. Sobrevive!
Sem ternura e calor,
Triste cidade onde estive.
Rosto fechado dos habitantes,
Olhos luz envidraçados,
Sonhos queimados, fumegantes,
Novos pecados inventados!
O amor não chega à cidade...


Lágrimas

⊆ sexta-feira, setembro 23, 2005 por GNM | ˜ 18 comentários »

Com as lágrimas
Se chora a perda e a dor,

Com as lágrimas
Se chora a vitória e o amor,

Com as lágrimas
Tudo é salgado
Pelo mar quente,

Com as lágrimas
Tudo é amado
De modo diferente.


Não basta

⊆ quinta-feira, setembro 22, 2005 por GNM | ˜ 28 comentários »

Não basta na cozinha a loiça por lavar,
Por trás da porta a tábua de engomar,
Fritadeira velha em que já nem frito,
Receita esquecida do meu bolo favorito.

Não basta na dispensa o pote de mel,
Meia garrafa embriagada de moscatel,
Seis pacotes rectangulares de leite,
Um frasco gorduroso de azeite.

Não basta na sala a gravura impressionista,
Os meus cd´s de musica intimista,
Tigela de fruta em cima da mesa,
Livros espalhados e vela acesa.

Não basta na casa de banho o tapete vermelho,
Escova de dentes na prateleira do espelho,
Cabide preto por trás da porta,
Tesoura enferrujada que já nem corta.

Não basta no quarto a cama de madeira,
Roupa suja em cima da cadeira,
Cortinas cor de vinho que tapam a janela,
Almofadas novas e incenso de canela,

Não basta gritar e fazer ouvir o meu grito,
Para todo o sempre, perdurado no infinito,
Não basta ter o mundo inteiro a meus pés!
Basta olhar-te a cada dia e amar-te como és.


Sorriu

⊆ segunda-feira, setembro 19, 2005 por GNM | ˜ 36 comentários »

Com candura insolente
Dormindo docemente, sorriu.
Amanheceu mais que atrasada
Olhou o relógio consolada, sorriu.
“Só mais uns minutos”, sorriu.
Levantou-se despenteada,
Maquilhagem esborratada,
Olhou-se ao espelho, sorriu.
Caminhou pela rua
Acreditando que a lua
Também era sua, sorriu.
Advertida pelo gerente,
Velho triste e diligente, sorriu.
Trabalhou com arte,
O cansaço à parte, sorriu.
Terminado o ofício,
Sem dor nem sacrifício, sorriu.
Passeou voluptuosa,
Soltando asas de mariposa, sorriu.
Aos olhares curiosos, sorriu.
No banco do jardim, sorriu.
Ao ruído do patos, sorriu.
À beira do lago, sorriu.
Na escadaria, sorriu.
Nas roseiras, sorriu.
No baloiço, sorriu.
Na relva, sorriu.
Sorriu
Sorriu
Sorriu
Sorriu
Voltou para casa encantada,
Jeito de criança endiabrada, sorriu.
Viu o correio,
Mais contas sem freio, sorriu.
Jantou iguarias de chacal,
Gourmet sem gosto nem sal, sorriu.
Olhou pela janela:
“Que cidade feia tão bela”, sorriu.
Fechou os olhos e pensou:
“Abençoado inventor do Amor”.


Inferno

⊆ sábado, setembro 17, 2005 por GNM | ˜ 17 comentários »

Rodo os meus olhos em roda do mundo,
Sangrando por dentro num golpe profundo:
Vejo os velhos abandonados, já esquecidos do seu nome,
Vagueando pelas ruas devorados pela fome.
Inocentes esfomeadas, destinadas a sofrer,
São crianças condenadas sem ter o que comer,
Enquanto baronesas que comem em excesso,
Pagam emagrecimento, dando graças ao progresso.
Sei de homens encarcerados por delito de opinião,
Castrados de pensamento que agonizam na prisão.
Amantes que hoje entregues à ilusão do amor,
Refazem-se amanhã, chorando lágrimas de dor.
Oh Dante, sabes lá o que escrevias,
Contaste um inferno que desconhecias
Sem saberes que o inferno estava mesmo aqui!


Ser

⊆ quarta-feira, setembro 14, 2005 por GNM | ˜ 17 comentários »

Nestes tempos de ter e haver
Andamos esquecidos de ser.
Adoramos deuses, ideais, bandeiras,
Trancámos no sótão as nossas genuínas maneiras,
Deixamo-nos possuir pelo pouco que possuímos,
Seguimos as ordens de quem nem sabe que existimos,
Vendemos por tostões a nossa apática dignidade,
Imploramos aos céus que nos destinem felicidade.
Não! Não sou mais um profeta
Anunciador da verdade secreta,
Sou muito menos que um Homem
Sou muito mais que um deus.
Mas os meus olhos não dormem,
Estes olhos são só meus.


Ventos

⊆ terça-feira, setembro 13, 2005 por GNM | ˜ 14 comentários »

Um poema sentido
Que alguém jamais crê
Do coração um pedido
Que o poeta não lê
A desagregação do momento
Não existe! Ninguém quer!
E como a massa do vento
Intempestiva mulher
Ela arrefece-me feroz
Com ressonâncias de morte
Ouve-se ao longe a voz
Fria e cruel da sorte
É o lirismo que sai
A epopeia que volta
A esperança não cai
O coração está à solta


Velho

⊆ sábado, setembro 10, 2005 por GNM | ˜ 20 comentários »

Quando eu for velho, sem idade
Para nada mais que saudade,
Vou pensar em ti todos os dias,
Metamorfosear tristezas em alegrias,
Serei vagabundo esfomeado?
Ou velho gordo endinheirado?
Não me importa nada disso,
Renovo a cada dia o compromisso
De viver um dia de cada vez,
Soltando os versos que agora lês.
Mas um dia, talvez de repente,
Amanhecerei diferente:
Os meus lábios estarão da cor do mármore,
O corpo estará rijo como tronco de arvore,
O meu rosto estará pálido e angular,
Estes olhos baços incapazes de te olhar,
Emanarei um nauseabundo cheiro a morte,
Será o fim desta minha escrita sem norte.
Não! Não quero flores nem lágrimas de saudade,
Uma vida de verdade alcança a eternidade...


Chuva

⊆ sexta-feira, setembro 09, 2005 por GNM | ˜ 19 comentários »

Repentina de improviso,
Antes da hora marcada,
Sem licença nem aviso,
Chega a chuva viajada.

Já foi mar que já foi rio,
Chegado à foz da nascente,
Já foi neve em dia frio,
Já foi nuvem, já foi gente.

Vejo-a da minha janela,
São tantas as formas da água,
Olho-a hoje, julgo-a bela,
Já foi lágrimas de mágoa!


Delirando

⊆ segunda-feira, setembro 05, 2005 por GNM | ˜ 12 comentários »

Todas as noites me devora a minha cama.
É uma cama tão triste, tão fria…
Lugar de sonho, tragédia, drama,
Onde deliro até ao raiar do dia.
Desperto sempre louco, baralhado,
Apaga-se-me no sono a fronteira
Entre o mundo sonhado
E a realidade verdadeira.
Esta noite olhei ao alto,
Sonhei-te a voar,
Corri, alcancei-te num salto,
Levei-te comigo p´ro fundo do mar,
Encontrámos uma cidade,
Aquela que me faz viver intensamente,
Onde se mata a sede de liberdade,
Onde eu conseguiria amar docemente.
Habitada por duendes dóceis e audazes,
Vivem felizes: Fizeram as pazes,
Destruíram fronteiras
Rasgaram bandeiras,
Encontrei a liberdade real, finalmente,
A única liberdade é aquela que se sente.
Todas as noites me devora a minha cama...


Mundo

⊆ sábado, setembro 03, 2005 por GNM | ˜ 16 comentários »

Pouco importa que sejas esbelto e azul,
Se te manténs furioso e letal.
Pouco importam os teus hemisférios norte e sul,
Se a incerteza é igual.
Pouco importam todas as tuas verdades,
Se as transformas em segredos.
Pouco importam os nossos sonhos e vontades,
Se nos escapam entre os dedos.
Pouco importa para onde queremos ir,
Se somos mortais inocentes.
Saibamos pelo menos sorrir,
Sejamos desgraçados sorridentes.


Louco

⊆ quinta-feira, setembro 01, 2005 por GNM | ˜ 9 comentários »

Sou louco transviado,
De pensamento alucinado,
Sem lugar no universo,
Como palavra sem verso.
Surripiei emoções,
Abominei tentações,
Nada tenho para dar,
Não sou humano: nem sei amar!
Que estou aqui a fazer?
Nasci, sem escolher,
Nasci, simplesmente,
Não sei o que sou, mas não sou gente.
Diletante perdido
Desde nascido...
Foi certamente um engano,
Entrei no palco errado, desceram o pano.
Caminho sem rumo, vagabundo,
Sou um extranumerário do mundo.


Paixões humanas

⊆ terça-feira, agosto 30, 2005 por GNM | ˜ 7 comentários »

Como são curtas as eternas paixões humanas
Ilusões queimadas em chamas de amargura
Profecias sagradas refeitas em profanas
Punhais afiados que rasgam a ternura
Serão anos, serão meses, serão semanas?
Que importa. O tempo é apenas a partitura
Das musicas medíocres e levianas
Que se ouvem no caminho da loucura


(Des)Emoções

⊆ domingo, agosto 28, 2005 por GNM | ˜ 15 comentários »

Num mundo adormecido,
Viajo no silêncio do sono perdido.
O passado não é mais que um tempo atroz,
E já não restam os ecos de uma única voz.

Para onde fugiu a coragem do querer?
Será que alguém se lembra de contemplar e viver?
Existirá ainda alguém que grite de dor
Na queda das pétalas da última flor?

Estará realmente o mundo tresloucado?
Ou são alucinações do meu olhar cansado?
Serão as razões que a razão desconhece?
Ou fugiram emoções e quem ama já esquece?

Talvez só nos reste sonhar,
Com um sorriso nos lábios até a esperança acabar,
Pois o tudo é o nada que vejo,
Quando fecho os olhos na frieza de um beijo.


Inexistência

⊆ sábado, agosto 27, 2005 por GNM | ˜ 8 comentários »

Eu não existo.
Não tenho dores,
Não tenho amores,
Porque persisto?

Se não sou nada,
Porque continuo por esta estrada?

Estou condenado,
Sou apenas um cadáver adiado.


Próxima vez

⊆ sexta-feira, agosto 26, 2005 por GNM | ˜ 6 comentários »

Da próxima vez,
Vou apostar na tua loucura,
Deitar por terra toda essa ternura,
Soltar-te as asas para não te esquecer.

Da próxima vez,
Vou libertar-te da minha verdade,
Vou dar-te força para tanta vaidade,
Olhar-te sempre sem nunca te ver.

Da próxima vez,
Vou desafiar a minha coragem,
Tirar paragens da nossa viagem,
Contar-te tudo o que quiseres saber.

Da próxima vez,
Vou sentir-te a cada segundo,
Deixar-te crer que vais mudar o mundo,
Mostrar-te o lado doce do meu ser.


Tu

⊆ quinta-feira, agosto 25, 2005 por GNM | ˜ 1 comentários »

Sentir a luz do teu amor,
Mergulhar no fogo do teu calor,
Ser eu, o teu, o único, o primeiro,
Embriagar-me no perfume do teu cheiro.

Tocar e sentir-te,
Delirar a ouvir-te.

Aprender contigo é crescer.
Olhar para ti é viver.


Esquece

⊆ quarta-feira, agosto 24, 2005 por GNM | ˜ 3 comentários »

Esquece o sol, esquece a lua.
Esquece o que passa lá fora na rua.
Para quê viver em sufoco?
Ser racional é maior loucura que ser louco.

Esquece o frio, esquece o calor.
Esquece a cor, esquece o sabor.

Shiiiiiu. Faz silencio, por um pouco,
Ser racional é maior loucura que ser louco.


Será

⊆ segunda-feira, agosto 22, 2005 por GNM | ˜ 1 comentários »

Neste clube restrito que é o mundo,
Quem sabe o que vai cá dentro, bem lá no fundo?
Quem sabe com certeza o que fazer?
Eu não sei, mas gosto de te ver.
Sei que toda a minha vida é um engano,
Pois eu sou feroz... mas humano.
E tu, serás uma dádiva da vida?
Ou apenas a prova de que ela está perdida?
Será que vale a pena viver assim?
Será que vale apena esperar pelo fim?
Será que sabemos porque corremos?
Ou a vida é só um jogo que já perdemos?
Já sei que é loucura, sejamos loucos então
Afinal o fim da procura, jamais será a razão.


Deixa-te ficar

⊆ sábado, agosto 20, 2005 por GNM | ˜ 3 comentários »

Deixa-te ficar na minha casa,
Deixa-me guardar o teu olhar,
Deixa-te aninhar na minha asa,
Há coisas que não deves mudar,
Mostra-te e diz-me quem tu és,
Do alto não se olha para o chão,
Olha-me e diz-me quem tu vês,
O risco não é mais que uma ilusão,
Diz-me o que te vai no pensamento,
Conta-me os sonhos que só tu sabes,
Traduzo a minha vida num momento,
Para um espaço onde só tu cabes,
Vamos caminhar a mesma estrada,
Partilhar a mesma perdição,
Vamos unir-nos na madrugada,
Mergulhar nas ondas da paixão.


Pára

⊆ sábado, agosto 20, 2005 por GNM | ˜ 2 comentários »

Pára! Só por um momento,
És como barco sem porto,
És como onda sem vento.

Liberta-te! Esquece o vazio,
És como tempestade sem chuva,
És como vela sem pavio.

Descobre-te! Larga essa expressão cansada,
És como beijo sem paixão,
És mais uma vida adiada.


Sal

⊆ sexta-feira, agosto 19, 2005 por GNM | ˜ 3 comentários »

Quem é o sal?
Aqui, no meio da multidão.
Dizendo que sim, sabemos que não.
Mas qual é o mal?
Qual é o mal, de viver sem sal,
De esconder a dor,
De mostrar pudor,
De viver sem furor,
De fingir o Amor,
Mas qual é o mal?
Qual é o de ser apenas mais um mortal?
Ser alguém previsível e temporal,
Que vive sem sal,
Que se esconde no fim,
Que só diz que sim,
Que sonha com jasmim,
Mas qual é o mal?
Qual é o mal, de se escravizar à moral?
Ser mais um igual ,
Que repele o sal,
Que vive no passado,
Que sonha acordado,
Num sono dourado,
Que um dia, já quebrado,
Nos olha nos olhos e diz:
Mas qual é o mal?
Qual é o mal, de ser mais um ser banal?


Quando

⊆ sexta-feira, agosto 19, 2005 por GNM | ˜ 5 comentários »

Quando olho os teus olhos,
Quando me perco na multidão,
Quando revelas os teus sonhos,
Quando te pego na mão,
Quando toco a tua pele macia,
Quando sinto o teu cheiro,
Quando iluminas o meu dia,
Quando o preenches inteiro,
Quando te zangas comigo,
Ou me tentas ultrapassar,
Quando dizes pára e eu sigo,
Quando nos sentamos a jantar,
Quando me deito a teu lado,
Quando te vejo dormir,
E o teu sorriso encantado,
Põe-me também a sorrir,
Quando me dizes que sim,
Quando me dizes que não,
Quando choras sem fim,
Quando me feres o coração,
Quando te alago de carinhos,
Quando me sinto desejado,
Quando cruzamos caminhos,
Quando tudo dá errado,
Quando chamas o meu nome,
Quando me pedes sempre mais,
Quando me dizes: Dorme!
Quando partes e sais,
Quando imaginamos o futuro,
Quando fugimos das chuvas,
Quando saltamos o muro,
Quando enganamos águas turvas,
Quando finjo ser forte,
Quando nos abraçamos,
Quando discutimos a morte,
Quando por amor nos tocamos,
Quando pensas em desistir,
Quando me dizes que não consegues,
Quando nem me queres ouvir,
Quando não sabes o que persegues,
Quando o tempo parece fugir,
Enquanto o tentamos parar,
Quando não consegues dormir,
Quando a luz se apagar,
Quando e sempre até ao fim,
Até ao último momento,
Estarei aqui dizendo-te que sim,
Até uivar o último vento...