Não sei o que queres dizer com glória, disse Alice.
Humpty-Dumpty sorriu, com desprezo. Claro que não, até que eu te diga. Quero dizer "aí tens um belo argumento que te arruma!"
Mas "glória" não significa um belo argumento que te arruma
, objectou Alice.
Quando eu uso uma palavra, disse Humpty-Dumpty, em tom de escárnio, ela significa o que eu decidir que significa, nem mais nem menos.
O problema é, disse Alice, se se pode obrigar as palavras a significar tantas coisas diferentes.
O problema é, disse Humpty-Dumpty, quem manda. Apenas isso.

Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas




rascunhos
de
abordagens
(eventualmente)
literárias



GNM


Nasci muito perto do fim dos anos 70. O meu nascimento aconteceu às primeiras horas de um dia gelado de Dezembro, e, desde aí, jamais consegui libertar-me do frio que se fazia sentir naquele dia. A normalidade foi algo que durante toda a vida inconscientemente ansiei, mas sempre recusei. Em criança ela espreitava-me durante a noite, olhando-me do lado de fora da janela. E eu, fingindo não a ver, fechava as cortinas...

Os ponteiros do relógio...

⊆ segunda-feira, agosto 28, 2006 por GNM | . | ˜ 28 comentários »

Os ponteiros do relógio desenham um ângulo recto perfeito que denuncia as nove horas da manhã. A cidade está envolta num perfume peculiar: mescla de enxofre com perfumes baratos e sonhos da noite anterior. Percorro uma rua imunda: beatas, lixo, homens… Tudo um nojo! Num vaivém inútil as pessoas acotovelam-se mutuamente, como se este fosse o último dia das suas vidas. Prefiro este sol suave que me aquece nas manhãs de Inverno, ao sol espesso como mel que escorre sobre mim nas tardes de Verão. Vesti a minha saia de ganga e, quando assim estou vestida, os homens olham-me como se eu fosse um táxi que querem saber se está livre. A minha relação com os homens é simples. Mesmo muito simples: odeio-os a todos! (A única excepção chamava-se João Pedro. Sim, chamava-se, mas já não se chama. A morte roubou-mo a 170Km/h sem aviso prévio. Desapareceu… Ébria simplicidade! Foi a grande história de amor da minha vida e, como qualquer história de amor, poderia contá-la em 3 volumes de 500 páginas cada um. Mas prefiro despachá-la neste par de parênteses, estou farta de sentimentalismos inúteis). Assim, desprezo-os o mais que consigo, e quanto mais o faço, mais eles se entregam a mim. O segredo desta aparente perversão é muito simples: os homens são como o soalho flutuante da sala, se forem bem montados, deixam-se pisar durante dezenas de anos.
Preciso de beber café para me sentir bem desperta. Entro na pastelaria que faz esquina com a avenida do restaurante onde trabalho, e o empregado afivela imediatamente um sorriso parvo nos lábios. Jogo com ele e retribuo o sorriso. O meu sorriso é falso como uma imitação grosseira de Dalí, mas ele nunca se apercebe disso. Está demasiado ansioso para observar pormenores. Gagueja enquanto fala comigo, e a mão, com que transporta perigosamente a chávena de café, é percorrida por um tremor compulsivo. É no balcão que acendo um cigarro e inalo profundamente até sentir os pulmões em chamas. Junto a chávena aos lábios, hoje pintados de vermelho bronze. Longe, muito longe, vão os tempos em que a paixão me tingia os lábios de rubro. Hoje, o único rubro que me tinge é o das minhas feridas.
(...)
O empregado da pastelaria fixa novamente os olhos em mim. Aproveito a deixa e esmago bruscamente a beata contra o cinzeiro de vidro fosco, como se fosse uma mulher cruel. Lanço um olhar misterioso, viro as costas e saio.


Excerto de um conto


28 respostas a Os ponteiros do relógio...

  1. Maria Carvalho Says:
    Sem comentários, meu querido! Adorei. Beijinhos.
  2. Joker Says:
    Caminhei lado a lado com essa mulher misteriosa envergando a sua máscara e a sua saia de ganga!

    Beijinho de magia!
  3. Rui Says:
    Boa prosa. Gostei muito. Onde andam os contos inteiros?
  4. Anónimo Says:
    Estes teus contos deixam-me sempre sem palavras.
    Beijos
  5. Alex Says:
    Foi uma descoberta esta tua nova forma de colocares as palavras em prosa? Ou só agora nos dás a conhecer? Gosto tanto!!!

    Um beijo amigo Gonçalo
  6. Anónimo Says:
    "Como se fosse uma mulher cruel"
    Poderá alguém que diz que "os homens são como o soalho flutuante da sala, se forem bem montados, deixam-se pisar durante dezenas de anos" não ser uma mulher cruel?
    Cruel, manipuladora, calculista... Uma combinação explosiva!
    Ainda não sei bem se gosto ou não dela, mas sem dúvida que fiquei curiosa!
    Beijo!
  7. Maria Carvalho Says:
    Só hoje me apercebi que esta música é lindíssima! Beijinhos.
  8. Lis Says:
    Que textos bonitos descobri hoje!
    Lis
  9. gato_escaldado Says:
    abre o apetite para mais. abraço
  10. joaninha Says:
    que conto bonito, mesmo sendo só um pedacinho... e pela rua fora vem-me à ideia que o Triumph vermelho fora para fazer vista com a outra, mas houve quem dissesse que morrera por mim... mas nunca suportei ter sociedades. E as história quase sempre são parecidas, há alguém que sofre da saudade que fica...
    Gostei tanto Gonçalo. Um beijinho grande para ti
  11. Thiago Forrest Gump Says:
    O personagem parece real.

    Se bem que certamente há mulheres assim. Homens também. Por que não?



    Abraços
  12. Carla Says:
    Deixo um beijo e desejo de bom fim de semana.
  13. osimachina Says:
    muito bom mesmo!!... continua!
  14. segurademim Says:
    ... nenhuma mulher a quem o namorado morreu a 170km/h se pode sentir bem... intolerante! ferida! até o olhar do empregado da café lhe faz mal

    triste, saio
  15. Hata_ mãe - até que a minha morte nos separe Hugo ! Says:
    Contos tristes... Mas a tristeza é... não posso citar, o que li.


    Gonçalo

    Gosto mt da sua escrita, e no lançamento do seu livro, sorri por o dedicar a uma colega bloguer !?

    Será aquilo um blog?

    Achei-o tristinho, lá ...espero que não seja um estado de espírito crónico.

    Deixo-lhe um abraço e o desejo de um bom fim de semana.
  16. isabel Says:
    Engraçado...também dou comigo a pensar assim...salvo raras excepções, é claro...

    Beijos e bom fim de semana
  17. Leonor Says:
    ola gonçalo.
    descrição dos espaço envolvente simples e perfeita em frases curtas para nao perder o leitor.
    mas diz-me: de quem é o conto ? (teu. presumo) nao está assinado.

    abraço da leonoreta
  18. jorgeferrorosa Says:
    As tuas palavras, em todos os dias continuam mais belas mais profundas, acendem pontos de fixação do olhar e escrevem na minha alma uma nova identidade. A situação acende-se no desabrochar das horas enquanto o mistério desenvolve...
    Belo o teu trabalho.
    Abraço grandalhão.
  19. Anónimo Says:
    Olá Gonçalo! passo para te dizer que te lancei um desafio no meu Pensamentos Azuis. Passa por lá, ok? Espero que aceites. Mais uma vez, o teu excerto está magnífico...

    Beijinho,
    Kita
  20. Alexandra Says:
    Excelente GNM!!! Esta personagem que aqui descreves podia ser qualquer um de nós...

    Mais palavras para quê? Não são necessárias!

    Beijos e Boa Semana!
  21. BlueShell Says:
    palavras que tocam bem fundo a gente...palavras que fazem libertar lágrimas há muito contidas!

    beijo-te, BShell
  22. digoeu Says:
    obrigada pela visita lá no blog!!
    e pelo elogio à tatuagem!
    ;)
  23. Eli Says:
    Também quero ler este (todo).

    :)
  24. Anónimo Says:
    Beijinho sim?
    **
  25. Anónimo Says:
    Um beijo grd grd gd grd grd *
  26. Anónimo Says:
    A minha vida vivo-a nos bastidores e não no palco... Agradeço a lembrança e retribuo o beijo com um sorriso...
  27. Susana Fonseca Says:
    Lindo!!!
    E a música é indescritível...
  28. Sofia Says:
    Nunca cá tinha estado mas fiquei fã! :)

    Gosto da forma como escreves e por isso digo-te que volto.

= Leave a Reply