Não sei o que queres dizer com glória, disse Alice.
Humpty-Dumpty sorriu, com desprezo. Claro que não, até que eu te diga. Quero dizer "aí tens um belo argumento que te arruma!"
Mas "glória" não significa um belo argumento que te arruma
, objectou Alice.
Quando eu uso uma palavra, disse Humpty-Dumpty, em tom de escárnio, ela significa o que eu decidir que significa, nem mais nem menos.
O problema é, disse Alice, se se pode obrigar as palavras a significar tantas coisas diferentes.
O problema é, disse Humpty-Dumpty, quem manda. Apenas isso.

Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas




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(eventualmente)
literárias



GNM


Nasci muito perto do fim dos anos 70. O meu nascimento aconteceu às primeiras horas de um dia gelado de Dezembro, e, desde aí, jamais consegui libertar-me do frio que se fazia sentir naquele dia. A normalidade foi algo que durante toda a vida inconscientemente ansiei, mas sempre recusei. Em criança ela espreitava-me durante a noite, olhando-me do lado de fora da janela. E eu, fingindo não a ver, fechava as cortinas...

Já mal me recordo das...

⊆ quinta-feira, junho 29, 2006 por GNM | . | ˜ 43 comentários »

Já mal me recordo das noites em que o sangue fervilhava
e nos moldávamos como barro nas mãos de um oleiro universal.
Como dois troncos de oliveiras centenárias que, torcidos, se entrelaçam.
Tacto. Espasmos. Asas.

Somos um poema por terminar.
Não! Não podemos ser um poema, somente um amontoado de versos indecifráveis.
Talvez sejamos dois gatos em sétima existência. Esgotámo-nos!
E a água gelada cai de onde menos esperamos.

Tentas semear-me…
Mas na terra infértil que sou nascem apenas cactos
e os espinhos atravessam-me a alma.

«Não te demores…»

Uma guilhotina de prata amputou-me as pernas.
Quero-te. Mas não consigo caminhar até ti.

Conheces o aroma das horas quando a espera se estilhaça em mil cacos?
Conheces-me?

Tenho frio. O meu peito é um bloco de gelo com arestas cortantes.
Duro. Pesado. Imóvel.

Posso dar-te as mãos? As minhas mãos estão quentes, ainda.
Exibem as cicatrizes dos rasgos por onde fugiu a minha inocência.
Estendo-as para ti, mas não as vês…

Ainda que o acaso nos negue, permaneço.

Dás-me as tuas mãos?

Sabias que matei um homem?
Empurrei-o para a frente de um comboio de saudade. Morreu desmembrado.
Porquê? Porque sim.

Conta-me… Diz-me como são as tuas mãos…
Desmembrado, não consigo poetizar-te as mãos.

Não sei se sou deus ou o diabo.
Serei as sílabas de uma palavra por inventar?
Talvez não passe de uma criança confusa.
Um objecto sem utilidade.
E gente? Não posso ser gente?

Por cada folha que te escrevo morro um pouco mais…
As folhas que te escrevo são rasgadas num gesto brusco de dentro de mim.
Rasga-me cada palavra; cada sentimento.

Quero parar de te escrever.

Continuo a escrever-te.

Odeio-me.


43 respostas a Já mal me recordo das...

  1. Anónimo Says:
    Caro Gonçalo,
    antes de ler as palavras da Maria Paula já as tinha na ponta da língua... lol
    Onde foste buscar este dom de arrepiar até à espinha quem te lê? Gostava de ter metade do teu talento...

    "Sabias que matei um homem?
    Empurrei-o para a frente de um comboio de saudade. Morreu desmembrado.
    Porquê? Porque sim." Confesso que estes versos me fizeram rir. :)

    Quanto ao teu livro, já soubeste alguma coisa sobre se ele vem ou não para a Fnac de Coimbra? Era uma ideia mandares por correio. Fazes ideia de quanto dinheiro custará?

    Deixo-te um beijo...
  2. Su Says:
    gostei de ler.te
    voltarei
    jocas maradas
  3. Anónimo Says:
    Não te odeies, ama-a...
    Não escrevas, escreve-a...
    Escreve-te na sua pele!!!!

    Lindo...gostei muito do que li!
  4. Lady Says:
    :) Olá! Mórbido, mas magnifico!!!!
    Mhmmm... pressinto ai uma contradição... e quanto maior ela é, mais forte se torna o sentimento... Deixa-te levar pela maré... onde cada onda é uma estrofe que se inventa e se inscreve no teu e/ou no dela... ;) Beijinhos e inté
  5. Anónimo Says:
    «Quero parar de te escrever.
    Continuo a escrever-te.
    Odeio-me.»


    Contradição estranha, tão familiar...

    Vou repetir-me uma vez mais, sem medos! Gosto muito, muito, de te ler.

    Beijo grande e um sorriso daqueles!
  6. Anónimo Says:
    Deixo-te um beijinho e um abraçao :*
  7. Anónimo Says:
    Dá as mãos e escreve sempre...

    xxx
    Deixa-me
    Sentar ao teu lado.
    Afastada...
    Do mundo que nos rejeita.
    Insatisfeita,
    Olhas o lago
    Onde se suicidam as vozes
    Que nascem sereias:
    Servas da morte,
    Encantando marinheiros
    Perdidos na cidade.
    Crueldade?
    Perguntas.
    Piedade.
    Respondo.
    Damos as mãos.
    A morte
    É companheira
    Dos mais sensíveis.
    Percebi.
    Afirmaste.
    Deixa-me
    Tocar a tua alma.
    A calma...
    É-me necessária
    Neste mundo que nos enjeita
    Deixa-me
    Ser tu:
    Menina.


    susana júlio
  8. Anónimo Says:
    Bonito Gonçalo! Muito, muito bonito!

    *
  9. greentea Says:
    bom dia para ti.

    deixei-te um comment no blog da serpentine


    hoje não consigo dizer mais nada.
    um beijo para ti
  10. alice Says:
    querido gonçalo,

    é admirável o teu poder de expressão de facto

    por favor responde ao meu último comentário logo que possas, sim?

    quero mesmo comprar este livro!

    beijinhos,

    alice
  11. Anónimo Says:
    Tens uma grande capacidade de mostrar o lado extremo das relações. Este é, sem dúvida, um óptimo texto.
    "Quero-te. Mas não consigo caminhar até ti." E aí está a essência da situação.
    Beijos
  12. Anónimo Says:
    Podes parar um pouco, mas...não deixes de escrever. O teu livro já está no meu saco de viagem. Parto amanhã para duas semanas de merecidas férias. Grande abraço.
  13. Susana Fonseca Says:
    Condeno-me por não ter comprado ainda o livro!!! Condena-me tu também, escritor de sonhos.
    E agradeço-te a música, ignorância completa da minha parte...nunca tinha ouvido esta música dos Placebo. E eu que me considero eterna admiradora da sua música.
  14. Cláudia Says:
    E por vezes tão forte, por vezes tão inexplicável. Quer fugir de algo que nos prende cada vez mais, querer sair de um beco, quer apenas sermos nós próprios e não conseguir, algo que não deixa, impede... Adorei!
  15. Rui Says:
    O ódio não cabe aqui. Escreva, escreva...
  16. isabel Says:
    Lindo!

    Não te odeies...Ama...
  17. Madeira Inside Says:
    Oh Gnm!!
    Deixas-me assim :D

    Beijinhos
    Bom fim-de-semana**
  18. MS Says:
    É na verdade um poema de uma grande intensidade!! Mt bem escrito, na semâmtica das ideias.
    E dos sentimentos?!

    Serás tu um verdadeiro sentir...
    ou as palavras do tema dos Placebo
    '...méfiez-vous des apparences, ça n'a aucun sens...'! deixam algo no ar?!?

    Placebo, adoro!! Som e voz!! Mt bom gosto, como sempre, creio!
    Ultimo album?

    bjs em tons de noite perfumada
  19. Paulo Says:
    Gostei de tudo!!! A musica incendiou-me o momento...biblioteca de sonhos..
    Força!
    Paulo
  20. lena Says:
    Gonçalo excelente poema, a força que as tuas palavras têm ultrapassam o querer...

    intenso e belo!

    parabéns Poeta

    fica um beijo meu e obrigada por partilhares a tua bela poesia

    lena
  21. Thiago Forrest Gump Says:
    De todos que já li aqui, este foi o que eu mais gostei.



    Abraços
  22. Rita Says:
    Em dias como hoje, que aches que o teu mundo não tem qualquer sentido nem cor... Eu estou aqui, como sempre estive e hei-de estar... Porque não há mais nenhum lugar onde possa estar...

    Hoje deixo-te um abraço, porque os beijos estão gastos e ppq sei que precisas de mais...

    PS: Lembra-te que estou sempre contigo...
  23. Anónimo Says:
    Já mal me recordo...
  24. Eli Says:
    POTENTE. TOCANTE.

    EXTRAORDINÁRIO*
  25. Anónimo Says:
    ...e eu gostanto de ti.
    toma as minhas mãos.fica com elas.derrete o gelo que tanto te queima.estou por aqui.sabes que sim...porque...!

    Gonçalo Nuno.meu doce Homem.
  26. Anónimo Says:
    Gostei, vou voltar... :)
  27. Anónimo Says:
    É bom perceber, que mesmo depois da "fama", ainda tens disponibilidade para nos deixares estas pérolas. Que bom!!!!!

    O acaso trouxe-me aqui e vou permanecer ... :)

    sorriso e beijo para ti
  28. joaninha Says:
    Li, reli e voltei a ler.
    A profundidade e intensidade com que dizes, faz-me sentir insignificante, para opinar sobre esta maravilha. Gosto muito de te ler e de sentir o que escreves.
    Espero poder ter o livro II dos tudo em muito mais do que o nada...
    Um beijo amigo
  29. Anónimo Says:
    Gélido esse amor...mas lindo.

    beijso (recatados)
  30. Susana Fonseca Says:
    desafio cinematográfico...
  31. Aleisa Says:
    Sempre que te leio, clico para te comentar... encosto a cabeça à mão esquerda, com o braço apoiado na secretaria, e fico, com um brilho no olhar e um sorriso ternurento, a olhar para o monitor sem saber o que escrever, porque as palavras são de uma pobreza terrivel quando preciso delas para defenir o quanto gosto de te ler...

    Um beijinho
  32. CLÁUDIA Says:
    Só escreve assim quem é mesmo Mestre na arte de brincar com as palavras e quase transformá-las em objectos que nos tocam, que podemos ver e pegar... com características próprias, texturas, cores, temperaturas...

    Texto incrível. Adorei.
  33. Pink Says:
    Forte, sentido até à medula, arrepiante mesmo ... mas muito belo! Gostei imenso.

    Um beijo
  34. segurademim Says:
    ... não são estas as palavras do ódio! arriscaria, que aqui há muito amor...
  35. Maria Liberdade Says:
    Às vezes escrever é o que nos resta fazer... Morre a dor, morre a escrita.
  36. Thiago Forrest Gump Says:
    Como ainda não atualizou, deixo-te um abraço.
  37. Carla Says:
    Continuas a escrever... e eu... a adorar ler-te!
    Beijos
  38. Anónimo Says:
    O ódio é o sentimento mais próximo do amor.
  39. Anónimo Says:
    Absolutamente fantástico. Esta dualidade que nos consome, não é? Esta dualidade que consome o escritor, o poeta (se bem que tenha alguma dificuldade em usar estas palavras no meu caso). O homem consumido pelo que escreve. É absolutamente (real e) fantástico: O olhar de poeta.
  40. Anónimo Says:
    Perfeito!
  41. Joaquim Amândio Santos Says:
    "
    evoluir não se compadece com a sofrega busca do saber em quantidade.
    não se trata de simplesmente saber mais.
    trata-se de saber melhor!
    "

    JAS
  42. Claudia Sousa Dias Says:
    Foi o texto da tua autoria que mais gostei de ler até hoje. Subscrevo o Tiago Forrest Gump!

    CSD
  43. Anónimo Says:
    ...que triste que te sinto.não consigo deixar de te ver e imaginar...triste.
    Gonçalo.

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